As Histórias que Jesus Contou: O Servo Obediente, Lucas 17:7–10

Outubro 17, 2017

por Peter Amsterdam

[The Stories Jesus Told: The Obedient Servant, Luke 17:7–10]

Nota: Devido a problemas no equipamento de vídeo, a versão filmada desta postagem ainda não está disponível.

No Evangelho segundo Lucas, encontramos várias parábolas que começam com uma pergunta para a qual a resposta é óbvia. Por exemplo, Jesus perguntou: Que homem dentre vós, tendo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e não vai após a perdida até achá-la?[1] E, Se algum de vós está querendo edificar uma torre, não se assenta primeiro a fazer as contas dos gastos, para ver se tem com que a acabar?[2] Outras parábolas começam com questionamentos os quais todos iriam responder negativamente, tais como, Qual o pai dentre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou se lhe pedir peixe, lhe dará por peixe uma serpente?[3]

A parábola do servo obediente não começa com uma pergunta apenas, mas três, das quais duas pedem respostas negativas e uma clama por uma resposta positiva.

Qual de vós terá um servo a trabalhar na lavoura ou a apascentar o gado, a quem, voltando ele do campo, diga: Chega-te e assenta-te à mesa? E não lhe diga antes: Prepara-me a ceia, e cinge-te, e serve-me, até que tenha comido e bebido, e depois comerás e beberás tu? Dá graças ao tal servo, porque fez o que lhe foi mandado? Creio que não. Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis; fizemos somente o que devíamos fazer.[4]

Nessa parábola Jesus fala de um servo. Em algumas traduções da Bíblia o servo é referido como escravo. Isso porque a palavra grega doulos pode ser traduzida tanto por servo como escravo. No tempo de Jesus, a escravidão era comum no Império Romano. Foi estimado que entre vinte e trinta porcento da população eram escravos. O fato de Jesus ter Se referido a um escravo não significa que tolerasse a escravidão. Referiu-Se a um servo/escravo para concretizar Seu ponto de vista, visto que era uma condição muito comum naqueles dias e um conceito que as pessoas certamente compreenderiam. É possível vislumbrar a atitude de Jesus sobre a escravidão pela forma como convocou Seus seguidores a perdoarem dívidas[5], já que boa parte dos que eram escravos estavam nessa condição por conta de inadimplência. Lemos também nas Escrituras que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas a si mesmo se esvaziou, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens.[6]

A escravidão no tempo de Jesus não tinha nada a ver com raça, como ocorreu no Novo Mundo. Na época do Império Romano, acreditava-se que a liberdade de alguns só era possível porque outros eram escravizados. Os conceitos de que liberdade seja um direito de todos e a escravidão abjeta pareceriam muito estranhos para alguém daquela época. Muitos se tornavam escravos naqueles dias por terem sido derrotados no campo de batalha ou por serem filhos deles. Algumas pessoas também se vendiam para a escravidão para escapar da pobreza ou pagar dívidas. Outras fizeram isso para obter empregos específicos. Os escravos às vezes controlavam a propriedade e possuíam seus próprios escravos. Não era incomum que os escravos fossem liberados ou pudessem comprar sua própria liberdade em algum momento. Alguns escravos eram pessoas cultas, e muitos tinham cargos importantes e de grande responsabilidade. Alguns foram treinados e serviram como médicos, arquitetos, artesãos, comerciantes, cozinheiros, barbeiros e artistas. Alguns dirigiam os negócios de seus mestres e eram considerados parte da casa de seus mestres. Na cultura da época, muitas pessoas consideravam importante e uma honra, bem como uma maneira de obter segurança econômica e alimentar, ao servir alguém de maior status social e econômico e estar ligado à sua casa. Embora nem sempre fosse esse o caso, não era incomum. O fato, contudo, é que os escravos no dia de Jesus eram escravos e não pessoas livres.[7]

A resposta à pergunta introdutória teria sido que ninguém que ouvisse Jesus jamais consideraria que seu servo ou escravo, que fosse um lavrador quer um pastor de ovelhas viria do trabalho e se deitaria à mesa de banquete para comer. Os papéis tradicionais do mestre e do servo estavam bem definidos naqueles dias, e permitir tal coisa implicaria dar ao servo o status de convidado de honra ou o equiparar ao mestre. Começar Sua parábola dessa forma teria aguçado a curiosidade daqueles que escutavam.

Hoje nos parece cruel fazer com que alguém que tenha trabalhado o dia inteiro no campo prepare e sirva uma refeição nos trajes adequados, sirva o mestre e, depois que tudo isso esteja devidamente atendido, possa comer. No mundo antigo, era considerado normal. Em reação à segunda pergunta, todos teriam respondido que, claro, o servo deveria, ao chegar do campo, antes de comer, servir a refeição de seu amo.

No contexto daquela época, ninguém que tivesse ouvido esta parábola esperaria que um servo recebesse um tratamento especial para cumprir suas funções. O criado simplesmente fazia o que se esperava dele como servo. O mestre não estava em dívida com o servo por manter as ovelhas ou arar o campo. Não havia ocorrido nada fora do comum e ninguém esperaria que o servo recebesse privilégios por simplesmente fazer seu trabalho. O servo colocou as necessidades do mestre antes das suas, reconhecendo e aceitando que seu primeiro dever era servir o mestre.

Ao ouvirem a terceira pergunta, Dá graças ao tal servo, porque fez o que lhe foi mandado? ou seja, Ele pergunta se o amo agradece ao servo por ter feito o que lhe fora mandado. A única resposta cabível na época seria “Claro que não”. A palavra grega traduzida como “dar graças” é charis, que geralmente é traduzida no Novo Testamento como “graça”. No entanto, no Evangelho segundo Lucas, é utilizado também no sentido de reconhecimento ou favor, de modo que se aproxima de implicar receber uma recompensa. Então, a questão é: o mestre recompensa o servo por fazer o que lhe foi dito para fazer?

Kenneth Bailey explica:

O mestre pode muito bem expressar apreço a um servo no final de um dia de trabalho com uma amável palavra de agradecimento. Mas a questão é muito mais séria. O mestre está em dívida com o seu servo por que este lhe obedeceu? Essa é a pergunta que espera uma resposta ressonantemente negativa na parábola.[8]

Neste ponto, Jesus se dirigiu aos ouvintes, que no contexto do Evangelho de Lucas são Seus discípulos, dizendo:

“Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis; fizemos somente o que devíamos fazer.”

Aqui, a frase “servos inúteis”, ou como é traduzida em outras traduções, “servos não lucrativos” ou “servos indignos”, também pode ser traduzida como “sem necessidade”. Em outras palavras, está afirmando que os servos ou discípulos que fazem O que lhes são mandados fazer “nada precisam”, o que significa que nada lhes é devido por seu mestre. O mestre não está em dívida com o servo por fazer o que se espera dele.

A mensagem, aplicada aos discípulos, era que aqueles os que servem Deus não se tornam Seus credores. Deus não está em dívida com os que O servem.

Isso não significa que Deus não recompense aqueles que O amam e O servem, mas sim que aqueles que servem a Deus não têm o direito de reivindicar uma recompensa. Em nosso relacionamento com Deus não ganhamos, merecemos ou negociamos recompensa. Um discípulo é um servo do Senhor por amor, dever e lealdade a Ele. O apóstolo Paulo se chamou servo ou escravo, dependendo da versão bíblica que você lê, o que significa que entendia sua relação com o Senhor como daquele que trabalha por um senso de dever e lealdade, em vez de por motivação financeira ou outro ganho qualquer. Serve a Deus com uma sensação de segurança total, sabendo que seu Mestre cuidará dele em todos os aspectos.[9]

Nossa salvação é uma dádiva que nos foi concedida por Deus. Não trabalhamos por ela nem fazemos por merecê-la. Nosso serviço a Ele é feito por gratidão e amor, bem como por dever para Aquele que nos redimiu. Ao fazermos algo que Ele nos mandou, Ele não fica “em dívida” conosco. Não devemos manter um registro mental de todas as coisas que fizemos para o Senhor, com a expectativa de que isso torna Deus devedor.

Isso não significa que não há recompensa para aqueles que servem a Deus. Jesus falou de recompensas várias vezes.

Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola seja dada secretamente. Então teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.Quando orares, entra no teu aposento, e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto. E teu Pai, que vê secretamente, te recompensará.… Para não pareceres aos homens que jejuas, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.[10]

Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, e quando vos expulsarem, vos injuriarem e rejeitarem o vosso nome como indigno, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai, porque grande é vosso galardão no céu. Pois assim fizeram os seus pais aos profetas.[11]

Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem, emprestai, sem nada esperardes. Então será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo, porque ele é benigno até para com os ingratos e maus.[12]

Há recompensas prometidas, mas nosso relacionamento com Deus não é uma questão de merecer, negociar ou trabalhar para alcançá-la ou ganhá-la. Como servos do Senhor, trabalhamos por Ele para cumprir nosso dever com Ele. O que recebemos de Deus é um presente de Suas mãos, não um pagamento por serviços prestados. Por mais que trabalhemos, quanto realizamos e por quanto tempo servimos ao Senhor, sob nenhuma circunstância Deus Se torna nosso devedor. Servimos a Deus porque Ele nos salvou. Nós o servimos porque somos gratos, porque O amamos. E por sermos motivados por amor e gratidão, não por alguma recompensa, é que Ele nos recompensa.


A parábola do servo obediente, Lucas 17:7–10

7 Qual de vós terá um servo a trabalhar na lavoura ou a apascentar o gado, a quem, voltando ele do campo, diga: Chega-te e assenta-te à mesa?

8 E não lhe diga antes: Prepara-me a ceia, e cinge-te, e serve-me, até que tenha comido e bebido, e depois comerás e beberás tu?

9 Dá graças ao tal servo, porque fez o que lhe foi mandado? Creio que não.

10 Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis; fizemos somente o que devíamos fazer.


Nota

A menos que indicado o contrário, todas as referências às Escrituras foram extraídas da “Bíblia Sagrada” — Tradução de João Ferreira de Almeida — Edição Contemporânea, Copyright © 1990, por Editora Vida.


[1] Lucas 15:4.

[2] Lucas 14:28.

[3] Lucas 11:11.

[4] Lucas 17:7–10.

[5] Mateus 6:12.

[6] Filipenses 2:6–7.

[7] Pontos extraídos de J. A. Harrill, Slavery, in C. A. Evans & S. E. Porter, eds., Dictionary of New Testament Background. (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2000), 1124–1127.

[8] Kenneth Bailey, Through Peasant Eyes (Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1980), 120.

[9] Ibid., 124.

[10] Mateus 6:3–4, 6, 18.

[11] Lucas 6:22–23.

[12] Lucas 6:35.